Ana Markl: "Aconselho toda a gente a acarinhar o seu eu do passado"
- Ana Rita Rebelo
- 11 de jun.
- 4 min de leitura
A radialista e autora falou com a hAll sobre o seu livro "Do Outro Lado do Tempo".

Das primeiras paixões ao medo de ser "estranha" para os "normais" e "demasiado normal" para os "estranhos", passando pelo divórcio dos pais até ao encontro da sua "tribo". Lançado a 26 de maio, o livro "Do Outro Lado do Tempo", da radialista Ana Markl, é uma viagem aos anos 90 e às dores de crescimento, com muita música e humor à mistura. É uma conversa imaginada entre a Ana do passado com o seu eu do futuro.
"Nunca perdi o tino aos meus diários e revisitei-os várias vezes ao longo da vida. Agora, fi-lo de uma forma mais exaustiva e descobri coisas maravilhosas", conta a autora à hAll. Ana Markl diz mesmo que teve "algumas epifanias" sobre si mesma. "Aconselho toda a gente que tenha registos de memórias a revisitá-los de vez em quando para uma viagem de auto-análise. E aconselho toda a gente a acarinhar o seu eu do passado, que tantas vezes ridicularizamos de forma tão injusta quando chegamos à idade adulta."
Que recordações guarda da adolescência?
É um momento de enorme intensidade, se nos conseguirmos entregar aos sentimentos. A música soa diferente. As paixões são arrebatadoras. Os primeiros concertos e festivais. As primeiras saídas à noite. As epifanias dos livros e dos filmes. Há tantas coisas que sentimos pela primeira vez... São essas que recordo. Também a sensação de querer crescer depressa para ser livre e de não querer crescer nunca para não me tornar uma adulta aborrecida e infeliz.
Tive muita vontade de ir aos anos 90 dizer à jovem Ana que "vai correr tudo bem"
O que preserva da Ana dos anos 90? A certa altura, fala da síndrome do impostor.
Diria que preservo tudo. Há claramente um contínuo. Vou até dizer que parece que foi ontem. A minha memória não divide a vida em capítulos. Revejo tudo o que sou no que fui e fui sempre assim. Tive a revelação de que já sentia essa espécie de síndrome de impostor, mas não lhe sabia dar um nome. Sentia-o no processo de afirmação da minha identidade: era demasiado "diferente" para me incluir na maralha, mas sentia que não tinha arrojo suficiente para me aproximar dos mais "alternativos". Felizmente, fui encontrando as minhas "tribos" e nunca deixei de ser quem era.
Como surgiu a ideia deste livro e de criar um diálogo imaginado entre o presente e o seu passado?
Quando fui reler os meus diários para escrever este livro, senti muita necessidade de falar com a jovem Ana. É até um exercício que se faz muito na psicoterapia, essa espécie de viagem no tempo para darmos a nós mesmos aquilo que não tínhamos com aquela idade, nomeadamente alguma calma e segurança que se ganha com o tempo. Tive muita vontade de ir aos anos 90 dizer à jovem Ana que "vai correr tudo bem" e por isso criei esse diálogo. A ilustradora Christina Casnellie fez um trabalho incrível na concretização desse diálogo, cruzando as narrativas dos dois tempos sem que se perca, visualmente, o fio à meada.
Alguns dos "visados"no livro já se manifestou?
Não. Na verdade, os visados não são expostos de maneira nenhuma. Tudo o que é exposto no livro era o que se passava na minha cabeça em relação a essas pessoas. Os amores não eram correspondidos, mas eram vividos intensamente através do que eu escrevia e da música que ouvia. Mais do que pessoas visadas, são símbolos de sentimentos que me atravessavam na altura.
Este livro é para quem? Os adolescentes de agora ou os de outrora?
Ambos. Serão lidos de uma forma pelos jovens de hoje e de outra forma pelas pessoas que cresceram nos anos 90. As angústias e as alegrias são muito semelhantes, apesar de tudo o que mudou desde então. Tudo se resume muito à forma como os adultos - e a sociedade, de forma geral - lidam com os adolescentes. Tudo se resume à luta pela aceitação de nós mesmos na dinâmica com a pressão dos pares e a expetativa dos pais e educadores. Esses são assuntos transversais.
Quando estou em angústia, ainda procuro escrever para me compreender.
Como foi a experiência de revisitar os seus diários? Foi um exercício vulnerável?
Eu estou sempre pronta para exercícios vulneráveis. Nunca perdi o tino aos meus diários e revisitei-os várias vezes ao longo da vida. Agora, fi-lo de uma forma mais exaustiva e descobri coisas maravilhosas. Senti um enorme orgulho na forma como processava os desafios, como fazia imperar a verdade dos meus sentimentos e a minha identidade, apesar de me considerar insegura. Senti um enorme orgulho também na minha decisão de ir contra algumas pressões dos pares, respeitando os meus valores e as minhas idiossincrasias. Por outro lado, percebi que mantenho alguma da ansiedade e da insegurança que era já tão notória naquele tempo.
Algo que a tenha surpreendido nessas leituras?
Tive algumas epifanias sobre mim mesma. Aconselho toda a gente que tenha registos de memórias a revisitá-los de vez em quando para uma viagem de auto-análise. E aconselho toda a gente a acarinhar o seu eu do passado, que tantas vezes ridicularizamos de forma tão injusta quando chegamos à idade adulta.
Tem ideia de quantos diários escreveu ao longo da vida?
Tenho uns dez diários e mais outros tantos cadernos de poemas e desabafos.
Ainda cultiva esse hábito?
Quando estou em angústia, ainda procuro escrever para me compreender, mas não consigo fazê-lo de forma tão regular. Tenho pena, porque é dessa escrita livre que surgem as melhores ideias, mas o tempo já não corre da mesma forma que corria na minha adolescência. Tenho muito que fazer, passa a correr.
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