"O narcisismo também pode ser vulnerável: estará o espelho a mostrar-lhe tudo?"
- Ana Rita Rebelo
- 25 de jun.
- 3 min de leitura
Este artigo é assinado pela psiquiatra Inês Costa Maia, especializada em perturbações de personalidade.

"É provável que já tenha ouvido falar de narcisismo, talvez até tenha usado o termo casualmente para descrever alguém egocêntrico, vaidoso ou que adora estar no centro das atenções. Mas, como psiquiatra especialista na área das perturbações de personalidade, posso garantir que o narcisismo vai muito além da imagem que temos do 'pavão' social.
O narcisismo é, na verdade, uma característica humana universal. Todos nós temos traços narcisistas em maior ou menor grau, como o desejo de ser reconhecido, valorizado, ou sentir-se especial. Isso não é, por si só, patológico. Até certo ponto, estas características contribuem para a nossa autoestima, sucesso e bem-estar psicológico. Não é à toa que em cargos de chefia em que confiança e liderança são necessárias, haja uma maior representação deste traço de personalidade. Mas quando falamos em narcisismo clínico, a conversa muda de figura.
O lado que (quase) ninguém vê: o narcisismo vulnerável
O que muitos não sabem é que nem todos os narcisistas são 'grandes egos' andantes. Como o Prof. Dr. Claas-Hinrich Lammers, psiquiatra alemão especialista em narcisismo, refere nas suas obras e palestras, muitos exibem um padrão a que chamamos de narcisismo vulnerável. E este, ao contrário do narcisismo grandioso (o mais conhecido), costuma passar despercebido, até nas próprias relações.
Este tipo de narcisismo apresenta-se com um rosto tímido, inseguro, sensível, e muitas vezes amável. Pessoas com este padrão não procuram os holofotes, mas têm um desejo profundo de serem especiais, de se sentirem reconhecidas. Apenas tentam atingir este objetivo de uma forma diferente do narcisismo grandioso, ou seja de forma 'reservada' e 'passiva'. Evitam a crítica, fogem do conflito, mas por dentro vivem um tumulto de emoções e pensamentos contraditórios. Podem parecer altamente empáticas, mas no fundo são extremamente frágeis a rejeições ou críticas, e tendem a sentir-se incompreendidas, injustiçadas ou menosprezadas. Podem acontecer acessos de raiva ocasionais em reposta a estes sentimentos e na interacção com os outros. Muitos destes indivíduos vivem presos num ciclo interno de vergonha, mágoa e frustração, frequentemente sem se aperceber que isto faz parte de uma estrutura de personalidade mais complexa.
E nos relacionamentos?
É precisamente nos relacionamentos íntimos que o narcisismo vulnerável se manifesta com maior intensidade. Conhece aquele sentimento de estar sempre a dar, sem nunca receber o suficiente? Aquela sensação de que ninguém compreende o 'quanto se esforça'? Ou aquela tendência para se sentir profundamente magoado com qualquer comentário que não soe como um elogio?
Estes pensamentos, se forem muito recorrentes, podem ser sinal de que há traços de narcisismo vulnerável em jogo. Muitas pessoas com estes traços acabam por se envolver com pessoas que validam, inconscientemente, este ciclo interno de insegurança e frustração, sentindo-se insatisfeitas com o parceiro/a, independentemente do esforço que este possa fazer, e tendo conflitos recorrentes mesmo pelas coisas mais 'insignificantes'.
'Será que sou narcisista?'
É comum ouvir esta pergunta no consultório, normalmente acompanhada de vergonha ou medo. Mas a resposta nem sempre é assim tão simples. Ter traços narcisistas não significa ter uma perturbação ou uma doença. Quando, porém, esses traços são intensos, duradouros e causam sofrimento (para si ou para os outros), então pode ser útil procurar ajuda. E não, a solução não são medicamentos.
A psicoterapia é a chave
Ao contrário de outras patologias psiquiátricas, como a depressão ou ansiedade, o tratamento do narcisismo vulnerável não se faz com comprimidos, mas com psicoterapia especializada. Técnicas como a Terapia Dialéctico-Comportamental (DBT), a Terapia dos Esquemas ou a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) têm-se mostrado eficazes, sobretudo quando aplicadas por profissionais com formação específica neste tipo de terapias.
Na Alemanha este tipo de abordagens são a norma para tratar perfis de personalidade mais complexos e felizmente, começam agora a ganhar terreno também em Portugal. Criar uma relação de confiança entre terapeuta e paciente leva tempo, especialmente quando lidamos com personalidades difíceis e uma forte tendência a evitar enfrentar certas emoções. Por isso, uma psicoterapia feita em regime de consultas pode precisar de, pelo menos, um a dois anos para trazer resultados duradouros.
Na terapia, o foco está em:
Regular emoções intensas, como vergonha, mágoa ou raiva;
Trabalhar nas crenças negativas como 'não sou suficiente' ou 'ninguém me compreende';
Desenvolver relações mais saudáveis, baseadas em reciprocidade, e não em validação constante e 'cobrança' de amor;
Reduzir o medo da rejeição e a hipersensibilidade à crítica.
Resumindo...
O narcisismo não pode ser simplesmente definido como um 'defeito' ou uma 'falha de caráter'. No caso do narcisismo vulnerável, trata-se de uma forma complexa de estar no mundo, muitas vezes marcada por dor emocional, insegurança profunda e uma necessidade intensa de reconhecimento e validação. Se se identificou com partes deste artigo, não se julgue. Muitas pessoas vivem esta realidade sem nunca lhe dar nome. A boa notícia? Há ajuda. Afinal, encarar quem somos por dentro pode revelar mais do que qualquer espelho alguma vez mostraria."
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